28 de ago. de 2009

INFÂNCIA



Levaram as grades da varanda
Por onde a casa se avistava.
As grades de prata.

Levaram a sombra dos limoeiros
Por onde rodavam arcos de música
E formigas ruivas.

Levaram a casa de telhado verde
Com suas grutas de conchas
E vidraças de flores foscas.

Levaram a dama e o seu velho piano
Que tocava, tocava, tocava
A pálida sonata.

Levaram as pálpebras dos antigos sonhos,
Deixaram somente a memória
E as lágrimas de agora.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

INCLINA O PERFIL



Inclina o perfil amado
Nos veludos do silêncio
E apaga sobre esse quadro
As velas do pensamento.

E fecha a porta da sala
E desce a escada profunda
E sai pela rua clara
Onde não façam perguntas.

E vai por praias desertas
Desmanchando os teus caminhos,
Cortando o fio às conversas
Dos teus próprios labirintos.

E ao chão dize: Sou de areia.
E às ondas dize: Sou de água.
E em valas de ausência deita
A alma de outrora magoada.

Sem propósito de sonho
Nem de alvoradas seguintes,
Esquece teus olhos tontos
E teu coração tão triste.

Talvez nem a sobre humana
Mão que tece o ar e a floresta
Perturbe alguém que descansa
De tão duras controvérsias.

Talvez fiques tão tranqüila,
Ó vida, entre o mar e o vento,
Como o que ninguém divisa
De uma lágrima num lenço.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

CANÇÃO



Há uma canção que já não fala,
Que se recolhe dolorida.
Onde, o lábio para cantá-la?
Onde, o tempo de ser ouvida?

Quando alguém passa e ainda murmura,
Abro os olhos, quase assustada.
A voz humana é absurda, obscura,
Sem força para dizer nada.

Qual será sobre a nossa poeira,
O lugar dessa flor secreta,
- da frágil canção derradeira
murcha no silêncio do poeta?

Que abstrata mão clarividente
Levantará do chão mortuário
Esse arabesco altivo e ardente
Morto num sonho solitário?

Cecília Meireles
In Retrato Natural

CANÇÃO



A palavra que te disse,
Talvez por ser tão pequena,
Em tais desprezos perdeu-se
Que não deixou pena.

Murmurei-a a uma cisterna
De turvas águas antigas
E foi-se de cova em cova
Em múltiplas cantigas.

Amadores deste mundo,
Nas águas vosso amor ponde;
Que elas vos darão resposta,
Quando ninguém responde.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

CANÇÃO



Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.

Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:
“o antepassado”.

Eras um poema
Cujas palavras
Cresciam dentre
Mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
Tempo sem rastro,
De esquecimentos
Atravessados.

Disso é que sofre
A amargurada
Flor da memória
Que ao vento fala


Cecília Meireles
In Retrato Natural

19 de ago. de 2009

CANÇÃO DO AMOR-PERFEITO



Eu vi o raio de sol
Beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
O anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
Sobre o mar largo
E ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
Deixei meus olhos alegres,
Trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
Já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
Gostaria que ficasses,
Mas, se fores, não te esqueço.


Cecília Meireles
In Retrato Natural-1949-

COMENTÁRIO DO ESTUDANTE DE DESENHO



ENTRE O EIXO e as pontas do compasso,
Meu Deus, que distância penosa,
Que giro difícil,
Que pesado manejo!

É certo que a circunferência está pronta,
Por toda a eternidade
Aqui no imóvel parafuso do alto,
Sonhada, prevista na perfeição total da auréola?

Meu Deus, meu Deus, é certo que só no caminho do traço
É que se vai assim de ponto em ponto,
De dor em dor,
Com medos de começo e fim,
Rodando cautelosamente?


Cecília Meireles
In Retrato Natural

TEMPO VIAJADO




DOS MEUS RETRATOS rasgados
Me recomponho,
Com minhas espumas de acaso,
Meus solos vivos de fogo.

Muito se sofre.
As doces uvas sabem a enxofre.

Vulcões mordem as raízes
Das minhas plantas.
Em barcos postos a pique,
Naufragaram minhas lembranças.

Dizei-me por que lugares
Que pastores pastoreiam
Até sempre estas saudades
A mim mesmo tão alheias.

Muito se pena.
E vimos na areia morrer a sirena.

Procuro pelo meu rosto
O tempo que se desprende.
Que agulhas de desencontro
Separaram minha gente?

Dos meus retratos rasgados
Me levanto.
E acho-me toda em pedaços,
E assim mesmo vou cantando.

Muito se perde:
Pela terra negra ou pela água verde.

(Se Deus agora me visse,
abaixaria seus olhos
e ficaria mais triste.)


Cecília Meireles
In Retrato Natural

CANTATA VESPERAL



CERRAI-VOS, OLHOS, que é tarde, e longe,
E acabou-se a festa a festa do mundo:
Começam as saudades hoje.

Longos adeuses pelas varandas
Perdem-se; e vão fugindo em mármore
Cascatas céleres de escadas.

Pelos portões não passam mais sombras,
Nem há mais vozes que se entendam
Nas distâncias que o céu desdobra.

As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
Sem esperanças de endereços.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

PEQUENA MEDITAÇÃO



Chorai, negras águas,
À sombra das pontes,
Na raiz das árvores.

Tempo melancólico
Amarrando os braços
Dos altos relógios.

Cresceriam lágrimas,
Se não se abolissem
As lembranças cálidas.

Noites antiqüíssimas
Até nos esperam
Nomes de carícia.

Seremos idênticos
Ao passado enorme,
De amor e silêncio,

Ao jamais recíproco
Sonho que resvala
Para precipícios.

Só triste matéria
Lembrará mais tarde
Nossa descendência.

Em ruas contrárias,
Vereis negros tetos,
Como velhas máscaras.

Mas não esta fluida
Verdade da vida.
As mãos – sem a música.

Chorai, negras águas,
A dor, vagarosa,
E a memória, rápida.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

PALAVRAS



ESPADA entre flores,
Rochedo nas águas,
Assim firmes, duras,
Entre as coisas fluídas,
Fiquem as palavras,
As vossas palavras.

Pois se por acaso
Dentro dos sepulcros
Acordassem as almas
E em sonhos confusos
Suspirassem rumos
De história passadas
E houvesse um tumulto
De ânsias e de lágrimas,

- lembrassem as lágrimas
caídas no mundo
nas noites amargas
cercadas dos muros
das vossas palavras.
Todas as palavras

Nos espelhos puros
Que a memória guarda,
Fique o rosto surdo,
A música brava
Do humano discurso.
De qualquer discurso.

Só de morte exata
Sonharão os justos,
Saudosos de nada,
Isentos de tudo,
Pascendo auras claras,
Livres e absolutos,
Nos campos de prata
Dos túmulos fundos.

No meio das águas,
Das pedras, das nuvens,
Verão as palavras:
Estrelas de chumbo,
Rochedos de chumbo.
A cegueira da alma.
O peso do mundo.

Adeus, velhas falas
E antigos assuntos!

Cecília Meireles
In Retrato Natural

DESENHO


(Ilustração de Graziella Mattar)


Árvore da noite
Com ramos azuis
Até o horizonte.

Estendi meus braços,
E apenas achei
Nevoeiros esparsos.

O resto era sonhos
No profundo fim
Da vida e da noite.

A memória em pranto
Os ramos azuis
Fica procurando

E de olhos fechados
Vejo longe, sós,
Meus alados braços.

Ó noite, azul, árvore ...
Suspiro a subir
Muro de saudade!


Cecília Meireles
In Retrato Natural-1949-

16 de ago. de 2009

Oração da Noite



Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, - embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embala a juventude...

(...)

Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!


Cecília Meireles
in Nunca Mais e Poemas dos Poemas- 1923-
(Excerto)

Canção Desilusória



Já não se pode mais falar!...
O encantamento está perdido...
Tudo são frases sem sentido
e as palavras dispersas no ar...
O encantamento está perdido!...
Já não se pode mais falar...

Já não se pode mais sonhar!...
Em vão se canta ou se deplora!
Todos os sonhos são de outrora...
Vêm de um sonho preliminar...
Em vão se canta ou se deplora...
Já não se pode mais sonhar!...

Já não se pode mais amar!...
Oh! soturna monotonia...
A saudade e a melancolia
são de todo tempo e lugar!
Oh! soturna monotonia!...
Já não se pode mais amar...

Já não se pode mais findar!
Numa interminável miséria,
depois do opróbrio da matéria,
surge o castigo do avatar!
Numa interminável miséria...
Já não se pode mais findar!...

Já não se pode mais chorar!
É o destino...o Alfa-Ômega... a Sorte...
É melhor não pensar na morte,
ao sentir a vida passar...
É o destino...o Alfa-Ômega... a Sorte...
E só nos resta renunciar!...


Cecília Meireles
in: Nunca Mais -1923-
(p. 37,38)
*Rio de Janeiro: A Grande Livraria Leite Ribeiro, [1923]
(Ilustração de Fernando Correia Dias, original no livro)

15 de ago. de 2009

26



Mais louvareis a rosa, se prestardes
ouvido à fala com que nos descreve
a razão de ser bela em manhã breve
para a derrota de todas as tardes.

Sabereis que ela mesma não se atreve
a fazer de seus dons grandes alardes,
pois o vasto esplendor de seu veludo
e as jóias de seu múltiplo diadema
não lhe pertencem: a razão suprema
de assim brilhar formosamente tudo,

é prolongar na vida o sonho mudo
da roseira - de que é fortuito emblema.


Cecília Meireles
in: Metal Rosicler

4



Não fiz o que mais queria.
Nem há tempo de cantar.
Basta que fiquem suspiros
na boca do mar.

Basta que lágrimas fiquem
nos olhos do vento.
Não fiz o que mais queria
e assim me lamento.

E a minha pena é tão minha,
quem a pode consolar?
Chorava caminhos claros
noutro lugar.

Chorava belos desertos
felizes de pensamento.
Mas a alma é de asas velozes
e o mundo é lento.


Cecília Meireles
in Metal Rosicler

XXV



Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre a tua alma nas tuas mãos
E abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!

Cecília Meireles
in: Cânticos

12 de ago. de 2009

Trânsito




Tal qual me vês,
há séculos em mim:
números, nomes, o lugar dos mundos
e o poder do sem fim.

Inútil perguntar
por palavras que disse:
histórias vãs de circunstância,
coisas de desespero ou meiguice.

(Mísera concessão,
no trajeto que faço:
postal de viagem, endereço efêmero,
álibi para a sombra do meu passo…)

Começo mais além:
onde tudo isso acaba, e é solidão.
Onde se abraçam terra e céu, caladamente,
e nada mais precisa explicação.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Evidência



Nunca mais cantaremos
Com o antigo vigor:
o entusiasmo era inútil,
e desnecessário, o amor.

Nos rostos que mirávamos,
derreteu nosso olhar
máscaras tão antigas
que se espantavam de acabar.

Nesse mundo que erguíamos,
deixamos presa a nossa mão.
E os companheiros, nestes muros?
Quando os terminam, e onde estão?

Puros e tristes ficamos,
puros e tristes e sós.
O coração é vaga nuvem.
E vaga areia, a voz.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

2 de ago. de 2009

O Quadro negro



Poema Formatado pela amiga Leila Derzi.
Seja bem-vindo. Hoje é