8 de dez. de 2011

Da solidão

Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só.


No entanto, a multidão tem sua musica,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes!


Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua musica,
seu ritmo, seu calor.


Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silencio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as arvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar,
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós:
como a noção que temos de nós.


E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava – Solidão – e logo seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava...


Solidão – dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
essas escadas, essas plataformas, essas pedras...
e deitava-me sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim – aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto – deitava-me nos ares,
onde quer que estivesse deitada.


Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões.


Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas és tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.

1958



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Festa

Jardins de raciocínio:
teoremas de flor em flor.
Assim as pedras e a areia.


Agora, os cultivadores contentes meditam.
E as tulipas de todas as cores
tecem longos tapetes sossegados.


Carrilhões d’água, repuxos de musica,
e um raio de sol desenhando hipotenusas
de canteiro em canteiro.


E pessoas de todas as idades
enternecendo-se entre as flores:
- Gente da Rainha Juliana, da Rainha Guilhermina,
do Príncipe Mauricio de Nassau.


Em que malas portentosas se guardam secularmente
chapéus de plumas e altas golas de lã?


E pessoas de todas as idades vêm de suas cidades,
de seus campos, de canais e moinhos
para sorrirem sobre as flores.
Extasiadas respiram o mês de maio.
Explicam todos os matizes,
pregas de pétalas, peso do pólen,
com sua experiência de artesanato subterrâneo.


Jardins de raciocínio:
- axiomas de raiz em raiz.


Tão simples, tão cordial, a festa no jardim:
Sapatos como pedras passam como borboletas.
Os cultivadores sorriem.


O ano inteiro se trabalhou por esse sorriso.
Por esse tapete de flores.



E o raio de sol re colhe o seus desenhos,
sobe para o céu, perde-se na bruma
como frágil escada de ouro.


E os anjos da alegria, de asas abertas,
acompanham Descartes.


1953



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)
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